Uma busca no dicionário Aulete por “ressentimento” revela o significado “sentimento de mágoa causado por agravo ou indelicadeza”. A palavra, aliás, vem de “ressentir”, que quer dizer “ficar magoado, ofender-se”. “Ressentir”, por sua vez, é formado pelo prefixo “re-” (que significa “repetição”) e pelo verbo “sentir”.
Ou seja, estar ressentido com alguém pode ser entendido como experimentar mais uma, duas ou inúmeras vezes sensações de rancor ou mágoa. “Esses dois sentimentos são afetos que podem compor o ressentimento”, explica a psicóloga clínica Vanessa Teixeira.
A mágoa, por sua vez, tem a ver com o entristecimento resultante de perdas ou de uma ferida aberta. “Imagine a mágoa como uma água parada, que fica represada enquanto é nutrida por um sentimento de pesar. Isso faz parte do ressentimento”, evidencia a especialista, que também mestre em psicologia pela PUC Minas.
O rancor, por outro lado, aparece quando a tristeza é “temperada” de uma raiva advinda de quem provocou o mal. “O rancor carrega uma agressividade dirigida a quem me prejudicou. Se eu reajo, o rancor pode ar. Caso contrário, esse sentimento pode se instalar como uma raiva contra mim mesmo, fazendo-me pensar que fui bobo ou fraco para reagir diante da maldade do outro”, aponta.
Dessa maneira, quando alguém nutre mágoa e rancor, advindas de um ressentimento, fatalmente acreditará que é obrigação do outro reparar o mal que lhe fez. “O outro é o ‘vilão’ que tem que consertar as coisas. Isso é um diferencial característico do ressentimento: ‘eu sou a vítima, e o outro é o culpado por todo mal que me fez ar, por toda mágoa e todo o rancor que me fez sentir. Portanto, ele que resolva a minha dor. Só então é que vou poder tirar isso do meu coração.’ O ressentido se coloca na mão do outro no sentido de: ‘me cure, ‘tire minha dor’”, exemplifica a especialista.
Mas o que leva alguém a se sentir ressentido? Para responder à pergunta, a pós-graduanda em fundamentos da psicanálise pelo instituto ESPE recorre ao livro “Ressentimento”, escrito pela psicanalista Maria Rita Kehl. Na obra, a autora explica que o ressentimento aparece quando se assume uma posição iva diante de uma ofensa.
“Esse tipo de postura diz respeito a não reagir ao agravo, a se calar e aceitar. E como se dá essa posição? Quando não me sinto à altura de responder à ofensa que o outro me causa. Eu considero que o outro é forte, importante, poderoso ou bonito demais para mim. Não sou páreo para ele, e, então, me calo e me esvazio. Então, o ressentimento surge em uma relação em que se supõe que um seja mais fraco que o outro: o ressentido sendo o fraco, e o vilão, o forte”, acentua Vanessa.
Ela destaca, no entanto, que é preciso relativizar as circunstâncias. Há situações em que, de fato, o outro é maior, como em casos de abuso sexual, autoritarismo político ou burocracia.
“Diante dessa situação, é preciso fazer uma ‘retirada estratégica’ e guardar minha reação para um momento mais propício. A Maria Rita Kehl diz que é uma ‘luta adiada’: na hora certa, eu reajo. Aí, não se instala o ressentimento, porque o sujeito ainda reconhece em si o poder de sair dali em um momento mais estratégico ou por meio de um luto daquilo que ele sofreu”, sinaliza.
Como lidar com o ressentimento?
Em sua experiência clínica, a psicóloga Vanessa Teixeira vê cotidianamente casos em que o ressentimento está instalado nas situações de vida de seus pacientes. Isso acontece, segundo ela, porque esse tipo de sentimento exerce uma função de não-responsabilização.
“Não é que o ressentido ‘viajou errado’. Ele pode, de fato, ter vivido uma situação que lhe causou dor, prejuízo, chateação... E pode ter sido uma situação em que o outro era mesmo mais forte que ele por qualquer motivo que seja. A questão está no seguinte: ‘o que você faz com o que fazem com você? Como você se coloca diante do agravo que o outro causa?’”, questiona a psicóloga.
Responder a esses questionamentos ou ao menos identificá-los é um o importante para aprender a lidar com sentimentos, como mágoa e rancor, de maneira saudável. Uma estratégia recomendada pela psicóloga Vanessa Teixeira é fazer um trabalho “de luto do que poderia ter sido, caso esse agravo não tivesse acontecido”.
“É isso um pouco o que o ressentido fica fantasiando: ‘se meu parceiro amoroso não tivesse me tratado tão mal, a gente poderia ter sido eternamente feliz.’ ‘Se minha mãe tivesse me acolhido e me dado mais amor, eu não me sentiria tão sozinho.’ ‘Se meu pai tivesse me dado os recursos para estudar, eu não me mataria tanto nesse trabalho’”, contextualiza. “Nesse processo, a mágoa vai escoar, e o sujeito vai ter a chance de separar três camadas: o que era do domínio dele e que optou por não realizar; o que era do domínio do outro, e, portanto, não tinha o menor controle; e o que era do domínio do impossível”, explica.
“Todos nós nos depararmos com a impossibilidade. O que fazer diante disso? Uma chance possível é culpar alguém pelo que não foi possível realizar, e, aí, entrar no ressentimento porque essa pessoa te privou das coisas boas da vida. Será? Talvez seja preciso consentir que outro não te deve nada”, aponta, destacando, no entanto, que nem sempre é possível tornar a se relacionar com o autor de uma ofensa.
“A cultura de perdão e reconciliação me parece um imperativo moral de fazer tudo ficar bem, restaurar a harmonia e a felicidade nas relações. Parece-me mais uma utopia que uma realidade, porque as relações são feitas de diferenças e, portanto, de desencontros e decepções. O ser humano tem amor e raiva, aceitação e indignação”, diagnostica.
Ressentimento pode provocar sintomas físicos
Ficar remoendo algo que não está sob o controle de nossas mãos pode, inclusive, levar ao aparecimento de sintomas físicos, como dores de cabeça, no peito e no estômago, fibromialgia e insônia. “Variados tipos de dermatite e problemas de circulação também podem ser uma manifestação da tristeza parada, de uma mágoa que não circula, e acaba saindo pela pele ou entupindo as veias”, revela.
Dessa forma, Vanessa sugere que o ressentimento seja acolhido e entendido, de modo que não se queira apenas se livrar dele. “O ressentimento tem a função de segurar as pontas do sujeito que se sente enfraquecido diante de uma ferida emocional. Isso não pode ser ignorado: é preciso escutar o sujeito ressentido sem julgamento, porque ele releva ali uma precariedade em dar conta do furo que o agravo lhe causa”, finaliza.